12 Junho 2020

MULTISTAKEHOLDERISM: OS DIVERSOS AGENTES ATUANTES NA GOVERNANÇA DA INTERNET

Matheus Felipe Sales Santos

A internet, como consequência das restrições impostas à livre circulação pelo estado de calamidade pública decorrente da COVID-19, tem ocupado papel central na continuidade das atividades antes exercidas, parcial ou totalmente, de modo presencial. Diversos negócios, com exceção daqueles que são considerados indispensáveis para o convívio social e essenciais no combate a disseminação da doença, tiveram que migrar ou concentrar as suas operações no ambiente digital.

Nesse período, inúmeras medidas foram adotadas com o intuito de fazer com que os benefícios oriundos da internet sejam desfrutados por um número cada vez maior de pessoas, a fim de minimizar os prejuízos advindos do necessário isolamento social imposto para achatar a curva de contágio.

No Egito, em parceria com o Ministério de Comunicação e Tecnologia da Informação, quatro empresas provedoras de internet aumentaram gratuitamente em 20% as quotas de download do pacote de dados de todos os assinantes, cujo custo será suportado pela Autoridade Reguladora Nacional de Telecomunicações, com o objetivo de incentivar as pessoas a continuarem em casa. Além disso, foram liberados os sites do Ministério da Educação e das instituições de ensino superior do país sem o consumo do pacote de dados dos usuários.

A provedora de internet canadense, Rogers, que atende a todas as províncias e territórios do país, isentou os assinantes, por tempo determinado, de taxas extras e flexibilizou as opções de pagamento das tarifas, garantindo aos clientes com dificuldades financeiras a continuidade do serviço por 90 dias sem suspensão ou desconexão.

O Ministério de Transportes e Telecomunicações do Chile, em coordenação com as empresas do setor de internet do país, disponibilizou acesso gratuito aos estudantes à plataforma de conteúdo educativo, com o intuito de permitir que continuem os seus estudos mesmo diante das limitações impostas pela COVID-19. A plataforma, além de acessível por dispositivos móveis, não consome o pacote de dados dos usuários.

No Brasil, foi firmado pela Agência Nacional de Telecomunicações e empresas atuantes no setor compromisso público para manter o país conectado, com a continuidade na prestação dos serviços, notadamente daqueles relacionados à saúde e segurança pública.

A Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), por sua vez, garantiu a manutenção da segurança do sistema DNS durante a pandemia da COVID-19 visando coibir os crimes cibernéticos que vêm sendo praticados com o uso abusivo e malicioso dos nomes de domínio.

Mas, afinal, qual o papel destes e outros agentes no uso e evolução da internet?

Desde o seu desenvolvimento inicial, a internet foi estruturada em três princípios basilares decorrentes da arquitetura em que foi fundada, quais sejam, abertura (opennes), acesso (access) e ponta a ponta (end-to-end), que permitem a sua continuidade como um meio de disseminação de informações e colaboração e interação entre os seus usuários independentemente de sua localização geográfica e sem a interferência de um poder central e controlador.

Para que não sejam desnaturadas essas características essenciais da internet, que ditam o seu modus operandi e remetem à sua fundação, é importante que os seus stakeholders atuem de modo conjunto e orientado visando moldar o seu uso e evolução em observância destes princípios.

É nesse cenário que se insere a governança da internet, que, apesar de ser um conceito ainda em modulação, em virtude, sobretudo, de diferenças linguísticas e de escopo, foi definida, em relatório elaborado em 2005 pelo Working Group on Internet Governance (WGIG), instituído pelo Secretário-Geral das Nações Unidas, do seguinte modo:

Internet governance is the development and application by Governments, the private sector and civil society, in their respective roles, of shared principles, norms, rules, decision-making procedures, and programs that shape the evolution and use of the Internet.

Neste relatório do WGIG, foram estabelecidas também as quatro principais áreas de políticas públicas relacionadas à governança da internet: infraestrutura e gerenciamento, o uso da internet, problemas relativos à internet e aspectos de desenvolvimento. Dentro dessas áreas, foram destacadas questões referentes, por exemplo, à gestão do sistema DNS e dos endereços IP, aos crimes cibernéticos e à propriedade intelectual.

A governança da internet se situa na atuação dos stakeholders nesse conjunto de temas complexos e multidisciplinares em que são considerados, por exemplo, elementos tecnológicos, desenvolvimentistas, socioeconômicos, legais e políticos.

Para que sejam salvaguardados os princípios estruturantes da rede, a governança da internet é desenvolvida em um sistema bottom-up, no qual as medidas são adotadas de modo horizontal e consensual, sem um poder central na tomada de decisões (como em um sistema top-down). Os temas são abordados numa concepção multissetorial, a fim de que os agentes afetos à internet participem das medidas que visem o seu desenvolvimento e evolução.

Em uma perspectiva geral, estes agentes são divididos, basicamente, em (a) organizações técnicas, como a Internet Society (ISOC) e a Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (ICANN), (b) setor privado, (c) governos, (d) sociedade civil e (e) organizações internacionais, como a International Telecommunication Union (ITU) e a World Trade Organization (WTO).

Devido a essa pluralidade de agentes que foi cunhado o termo multistakeholderism, que pode ser entendido como um modelo de participação múltipla em que há uma infinidade de partes que participam nos processos e discussões sobre governança da internet e no desenvolvimento de políticas para a internet, com abertura, transparência e inclusão.

As discussões sobre governança da internet ocorrem, principalmente, no Internet Governance Forum (IGF), plataforma global de diálogo na qual são debatidas anualmente as principais questões referentes ao tema por estes diversos stakeholders, como representantes dos governos, empresas do setor privado, especialistas técnicos, pesquisadores acadêmicos e a sociedade civil.

É importante que a atuação dos stakeholders permaneça direcionada ao alinhamento do uso e evolução da internet com os princípios que orientaram a sua fundação, de modo que continue aberta, global e acessível, como instrumento de realização de direitos, de fomento social e de desenvolvimento econômico, preservando a sua natureza descentralizada, que permite a sua continuidade como uma plataforma para inovação, comunicação, compartilhamento, criatividade e oportunidades.

Neste momento de isolamento social decorrente do necessário controle da disseminação da COVID-19, em que a internet tem ocupado posição estratégica como ferramenta a possibilitar a continuidade de atividades que antes eram exercidas, total ou parcialmente, de modo presencial, é importante que estes múltiplos stakeholders continuem a atuar, em observância dos princípios orientadores, para fazer com que os benefícios advindos do uso da rede sejam usufruídos por um número cada vez maior de pessoas, já que, como bem enunciado pela ISOC, internet is for everyone.

Referências

https://egyptindependent.com/egypts-internet-companies-to-increase-bundle-quotas-by-20-ministry/

https://thelogic.co/news/suspending-data-caps-offering-bill-relief-how-22-canadian-internet-service-providers-are-responding-to-the-pandemic/

https://www.subtel.gob.cl/mineduc-mtt-y-atelmo-impulsan-la-teleducacion-con-acceso-gratuito-a-contenido-educativo-frente-a-contingencia-por-coronavirus/

https://www.anatel.gov.br/institucional/component/content/article/171-manchete/2538-anatel-e-setor-de-telecom-firmam-compromisso-publico-para-manter-brasil-conectado

https://www.icann.org/news/blog/keeping-the-dns-secure-during-the-coronavirus-pandemic

https://www.wgig.org/docs/WGIGREPORT.pdf

https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2017/09/ISOC-History-of-the-Internet_1997.pdf

https://www.internetsociety.org/wp-content/uploads/2017/09/ISOC-PolicyBrief-InternetGovernance-20151030-nb.pdf



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