30 Junho 2020

Nota do Capítulo Brasileiro da Internet Society sobre o relatório ao PL 2630/2020, de autoria do Senador Angelo Coronel

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São Paulo, 24/06/2020

O Capítulo brasileiro da Internet Society (ISOC Brasil) vem a público, uma vez mais, para apresentar considerações de ordem técnica à versão do relatório ao PL 2630/2020, de autoria do Senador Angelo Coronel, divulgada extraoficialmente no dia 19 de junho de 2020. A corrente nota reafirma a declaração emitida pela ISOC Brasil, em 9 de junho de 2020, a respeito dos riscos das propostas para conter a desinformação em discussão no Congresso Nacional. As considerações abaixo devem ser lidas em conjunto com importantes manifestações feitas por outras organizações do Brasil e do exterior a respeito do PL 2630/2020, quanto a  seu impacto sobre direitos fundamentais dos cidadãos brasileiros, a suas contradições à Constituição Federal e a outros aspectos atinentes ao desenvolvimento social e econômico do Brasil. [1]

A criação de contas em aplicações e serviços de Internet não deve depender da apresentação de documento de identidade por parte dos usuários. Esse condicionamento para o uso de tais aplicações e serviço é excludente, ignorando que a Internet é para todos, inclusive para aqueles que não possuem um número de celular válido, ou documento de identidade, ou aqueles que não querem se identificar, como ativistas e fontes jornalísticas. O anonimato como proteção de ilícito já é vedado pela Constituição Federal, não necessitando o ordenamento jurídico brasileiro de disposições que podem cercear direitos fundamentais, como a liberdade de expressão.

A coleta excessiva e a retenção desnecessária de dados dos usuários suscita preocupações graves no tocante à privacidade e proteção de dados. O aumento da coleta e do tratamento de dados pessoais exige uma maior complexidade dos sistemas empregados por serviços e aplicações de Internet, o que aumenta o risco de incidentes de segurança (como vazamentos de dados e a ocorrência de ataques maliciosos). A identificação dos usuários, por meio de seus documentos de identidade, é excessiva e desproporcional, contrariando o disposto no Marco Civil da Internet e na Lei Geral de Proteção de Dados. Ignora-se, portanto, o princípio da necessidade, que determina que a coleta de dados deve ser limitada ao mínimo para a realização de suas finalidades.

Vincular o funcionamento de aplicações e serviços de Internet à telefonia móvel é uma solução anacrônica e contraproducente. A proposta torna-se ainda mais grave porque trata aplicações de mensageria e serviços eletrônicos de forma indistinta. O fato de algumas aplicações de Internet utilizarem-se da telefonia móvel como elemento de registro e autenticação de usuários não faz disso uma condição necessária para o seu desenvolvimento. O legislador - ao abraçar uma única tecnologia, a telefonia móvel, em detrimento de todas as demais possibilidades - acaba por fechar as portas para a inovação tecnológica. Sem qualquer justificativa, o relatório amplia o alcance de tal condicionante aos serviços de correio eletrônico, que utilizam protocolos próprios e seguem lógicas funcionais, operacionais e técnicas que não guardam qualquer relação com mensageiros como WhatsApp, Signal, Telegram e similares.

A exigência de hospedagem de dados no território nacional e a possibilidade de suspensão de aplicações e serviços de Internet no território brasileiro levarão à fragmentação da Internet global. É da natureza aberta e global da Internet o livre acesso a serviços e conteúdos produzidos em todo o mundo. O valor da Internet está justamente em facilitar esse acesso e a comunicação em escala mundial. Obrigar serviços a armazenarem dados em território nacional faz com que inúmeros serviços se tornem inacessíveis ao público brasileiro, simplesmente por não terem sido criados no país ou não terem sede no Brasil.

As mudanças conceituais propostas no texto do Marco Civil da Internet são tecnicamente equivocadas e trazem enorme insegurança jurídica para o ecossistema da Internet. O texto proposto cria conceitos técnicos inexistentes (e.g.: "nateamento") e definições jurídicas que não condizem com a técnica e o funcionamento da Internet (e.g.: "portas lógicas"). Esse descompasso resulta em normas imprecisas, muitas vezes inaplicáveis, que geram insegurança acerca do comportamento esperado por parte de provedores de aplicações e serviços, oferecendo riscos para empresas e desamparando a sociedade de meios eficazes para coibir abusos e condutas lesivas ao interesse público. Além de adotar definições equivocadas e deficientes, o relatório desconsidera que o uso da técnica de CGNat (Carrier Grade Nat), de onde decorre a necessidade de tratar das "portas TCP/IP", é um subterfúgio técnico não recomendável e que deverá, em breve, estar obsoleto. Nesse sentido, para além de ser conceitualmente frágil, a proposta de se incluir o número das portas TCP/IP nos registros de que trata o Marco Civil da Internet poderá não fazer sentido em muito pouco tempo em virtude da crescente migração a para a versão IPv6 do protocolo IP (a solução recomendada unanimemente pela comunidade técnica envolvida com a governança da Internet).

Além de manter a solução equivocada e desproporcional de rastreabilidade constante do texto original do PL 2630/2020, o relatório a amplia de forma ainda mais desmesurada a todos as redes sociais, serviços de mensageria digital e serviços de correio eletrônico, independentemente de sua presença no território nacional e do porte econômico de seu respectivo provedor. A rastreabilidade, nos termos propostos, não poderá ser conciliada com a preservação da privacidade e confidencialidade das comunicações privadas. Isso terá implicações graves para o uso da Internet no Brasil, seja por indivíduos, seja por organizações do setor público e do setor privado.

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Em virtude de todos os problemas apontados acima, reiteramos nossa preocupação com as inúmeras restrições técnicas, tecnológicas, econômicas e sociopolíticas que poderão incidir sobre a sociedade brasileira como efeitos colaterais indesejados da proposta.

Reafirmamos, igualmente, nossa convicção de que o assunto em questão deve seguir o modelo de produção colaborativa empregado no Marco Civil da Internet, com ampla e exaustiva participação da sociedade brasileira nas atividades do Poder Legislativo. Nesse sentido, sugerimos que seja considerada a realização de consultas abertas sobre pontos específicos do texto e de audiências públicas que permitam o debate dos muitos pontos controversos do relatório.

Destacamos, finalmente, que uma abordagem principiológica segue sendo o caminho adequado para assegurar que a intervenção legislativa e regulatória possa ser capaz de alavancar a Internet ainda mais como ferramenta capaz de contribuir para o desenvolvimento técnico, tecnológico, socioeconômico e humano no Brasil.

 

[1] Neste sentido, ver "O Senado pode adotar a pior lei de Internet do mundo": http://plfakenews.direitosnarede.org.br/; "Diga aos senadores/as que novo relatório é um grave risco a direitos conquistados": https://act.eff.org/action/pl-das-fake-news-no-brasil-diga-aos-senadores-as-que-novo-relatorio-e-um-grave-risco-a-direitos-conquistados; "Texto do senador Ângelo Coronel demanda mais tempo de discussão antes de ser apreciado": https://direitosnarede.org.br/2020/06/02/votacao-do-pl-das-fake-news-poe-em-risco-liberdade-de-expressao-online-e-nao-pode-ser-votado-as-pressas.html;  

 

 



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