Curso orienta redes comunitárias brasileiras sobre como obter reconhecimento legal
O texto original pode ser lido no site da ISOC Foundation, a tradução foi realizada por Luã Cruz e Laila Lorenzon.
O Brasil é conhecido por sua complexa burocracia, assim, mal-entendidos e tentativas de evitá-la têm deixado muitas redes comunitárias operando de forma irregular ou até ilegal. Como resultado, muitas temem ser classificadas como ‘serviços clandestinos de telecomunicações’, o que pode acarretar em multas de R$ 10.000 ou penas de detenção de dois a quatro anos.
Uma rede comunitária é uma solução de acesso à Internet construída e administrada por uma comunidade, e não por meio de um grande provedor de acesso à Internet, oferecendo uma maneira de reduzir a exclusão digital.
“Operar sem as devidas autorizações pode deixar as redes comunitárias vulneráveis à perseguição política ou acusações oportunistas”, explica Marcelo Saldanha, presidente do Instituto Bem Estar Brasil (IBEBrasil).
Wagner Crespo, (primeiro plano), com um colega que o ajudou a estabelecer a rede comunitária em Espírito Santinho.
Foto cedida por Wagner Crespo.
Saldanha foi o instrutor principal de um novo curso sobre questões regulatórias e políticas públicas relativas às redes comunitárias, organizado pelo Capítulo Brasileiro da Internet Society e financiado com uma Small Grant 2020 de US$ 3.500 da Internet Society Foundation. Dezenove representantes de uma dúzia de redes comunitárias concluíram o curso online de 32 horas entre outubro e novembro de 2020.
“Eles agora entendem como a Anatel [Agência Nacional de Telecomunicações] funciona e como interpretar corretamente os documentos escritos em termos jurídicos e técnicos com referências a leis e decretos. É importante para as redes comunitárias obter essas informações práticas e há abertura da Anatel para reconhecer as redes comunitárias.” Flávio Rech Wagner, presidente do Capítulo Brasileiro da Internet Society e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Como resultado do treinamento, seis redes comunitárias iniciaram o processo de registro oficial em dezembro, solicitando licenças à Anatel.
Entre elas estava Wagner Crespo, engenheiro que ajudou a montar uma rede comunitária como voluntário no bairro Espírito Santinho, município de Campos, no Estado do Rio de Janeiro, em dezembro de 2019.
Mapa do Brasil, mostrando a localização do Espírito Santinho em Campos.
“Não nos legalizamos perante a Anatel porque o processo é muito complicado, mas o curso nos ajudou a fazer as coisas da maneira certa”, diz Crespo. “Isso foi muito importante porque no Brasil tem muita gente que trabalha pelo bem social, mas se fizer algo um pouco errado, talvez por falta de conhecimento, pode ser crucificado”.
“Estávamos preocupados que a comunidade que conectamos pudesse sofrer se algo desse errado. Era uma grande preocupação para nós, mas não sabíamos por onde começar a legalizar a rede, ou onde encontrar essas informações. Se não fosse por este curso, ainda estaríamos vivendo com medo.” Wagner Crespo
Estar ‘regularizado’ também permitirá que os administradores de redes comunitárias se inscrevam para bolsas ou financiamentos e participem de programas e políticas públicas. Em muitos casos, esses financiamentos exigem que as redes sejam legalmente registradas ou, pelo menos, favorecem aquelas que o são, diz Saldanha.
Todas as seis redes que se candidataram obtiveram a primeira de duas autorizações - para que elas ofereçam serviços. A segunda, para uso de espectro, ainda está pendente.
Outra das primeiras candidatas foi Bruna Zanolli, uma comunicadora popular de 33 anos, que ajudou a estabelecer seis redes comunitárias diferentes, a última delas em um quilombo no Estado de São Paulo.
“Eu queria fazer o processo sozinha, antes de dizer à comunidade como fazê-lo”, diz ela. A experiência também a ajudou a montar um pequeno guia introdutório para comunidades que estão interessadas em iniciar uma rede comunitária. “Eu perguntei à comunidade e eles quiseram se regularizar. Por serem quilombolas, suas terras são propriedade do Estado e eles não querem que nada contra a lei ou mesmo remotamente questionável aconteça em seu território ou coloque em risco sua RD (rede comunitária) ”.
“Para mim, esse curso também foi para conhecer o estado da nossa legislação e o Marcelo é uma enciclopédia humana para isso”, acrescenta Zanolli.
“Eu queria conhecer a lei para ajudar, eventualmente, a mudá-la, especialmente para beneficiar as comunidades indígenas e quilombolas e as populações historicamente desfavorecidas.”
Ao mesmo tempo, o IBEBrasil, a ISOC Brasil, a Association for Progressive Communications e outros defensores de redes comunitárias têm pressionado por uma mudança nas leis e regulamentos existentes desde 2008, seja para eliminar a burocracia e/ou para torná-la mais simples.
“As políticas digitais do Brasil são tão desconexas que parece que foram feitas para não funcionar”, brinca Saldanha. Mas a Anatel anunciou que em breve simplificará os regulamentos para beneficiar as redes comunitárias.
Após aquele grupo inicial de seis redes comunitárias, duas outras participantes do curso começaram a reunir a papelada para a regularização, enquanto as quatro restantes ainda estão em discussões com suas comunidades.
“O IBEBrasil deu um treinamento muito concreto sobre como navegar na burocracia da Anatel e quais documentos precisam ser preenchidos”, diz Wagner. “Se elas tentassem descobrir sozinhas, poderia levar muito tempo ou elas poderiam fazer a coisa errada, então isso também é uma espécie de empoderamento”.