Confira a Manifestação da ISOC Brasil sobre a proposta de decreto que visa regulamentar o Marco Civil da Internet.
O documento completo pode ser baixado aqui.
A ISOC Brasil, capítulo brasileiro da Internet Society, vem se juntar a diversas outras entidades nacionais e internacionais e expressar sua profunda preocupação com a minuta de decreto elaborada por iniciativa do Ministério do Turismo, que foi tornada pública recentemente e visa alterar o Decreto nº 8.771, de 2016, que regulamenta o Marco Civil da Internet, impactando o modelo de responsabilidade de intermediários em vigor no país desde a introdução do Marco Civil.
A ISOC Brasil publicou na data de ontem seu Decálogo de Recomendações sobre o Modelo Brasileiro de Responsabilidade de Intermediários, resultado de um processo de discussão de vários meses entre os membros da entidade e representantes de outros setores da sociedade brasileira, realizado no último trimestre de 2020. Tal Decálogo serve como um importante guia para a discussão das impropriedades introduzidas pela minuta de decreto originada do Ministério do Turismo. Como ele expressa em sua Recomendação 5, “o regime de responsabilidade civil do Marco Civil não precisa de reformas”. Esta é a base desta manifestação da ISOC Brasil.
A Recomendação 3 do Decálogo da ISOC Brasil estabelece que “a mais ampla participação de todos os setores pertinentes deve ser assegurada em qualquer processo de desenvolvimento de políticas ou regulações atinentes à Internet”. Este princípio foi amplamente seguido na elaboração do Marco Civil da Internet, que foi resultado de intenso e longo debate aberto, público e multissetorial. Não pode tal conquista da sociedade brasileira ser agora ameaçada por um decreto proposto de forma unilateral por uma instância do Governo Federal, sem nenhuma discussão prévia com a sociedade.
Nesta mesma linha, é importante ser ressaltado que o Marco Civil da Internet prevê expressamente que o CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil) deve participar ativamente em ações da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para o desenvolvimento da Internet no Brasil. O CGI.br é, por essência, a expressão da representação multissetorial da sociedade na proposição de diretrizes em temas relacionados à governança da Internet no Brasil. Assim, tal minuta de decreto deveria ter necessariamente passado pelo escrutínio do CGI.br e contado com sua manifestação.
A Recomendação 6 do Decálogo da ISOC Brasil, por sua vez, prevê que “processos específicos de aprimoramentos no Marco Civil da Internet devem preservar seus princípios e seguir seu modelo de construção”. A minuta de decreto do Ministério do Turismo subverte a lógica do modelo de responsabilidade de intermediários previsto pelo Marco Civil da Internet, que em seu Artigo 19 prevê a responsabilização dos provedores de aplicações de Internet apenas se não removerem conteúdo após ordem judicial expressa. Este regime busca conciliar a diversidade e a pluralidade de aplicações existentes no ecossistema construído a partir da Internet com a responsabilização dos verdadeiros autores ou originadores de conteúdos e postagens ilícitas e/ou ofensivas. A minuta de decreto do Ministério do Turismo, além de atacar a liberdade dos modelos de negócios responsável por alavancar o potencial de inovação inerente à Internet, cria um dispositivo legal não previsto no Marco Civil da Internet que ele pretende regulamentar, impedindo provedores de aplicações de aplicarem termos e condições que lhes garantem autonomia para tratar, localmente, de uma infinitude de problemas técnicos que exigem flexibilidade operacional, como é o caso de medidas técnicas capazes de mitigar postagens de conteúdos massificados, o espalhamento de códigos maliciosos e certos fluxos que objetivam minar a estabilidade e a segurança de serviços, como é o caso de ataques DDoS. Assim, sob uma pretensa intenção de defesa da liberdade de expressão, a minuta de decreto, na realidade, afeta - entre outras coisas - o funcionamento estável e seguro dos serviços ofertados por esses provedores.
O regime brasileiro de responsabilidade dos intermediários, além disso, não exclui a responsabilização dos provedores de aplicações por remoções indevidas ou excessos injustificados na moderação de conteúdos que sejam capazes de afetar direitos fundamentais de seus usuários. Em sua ação de moderação de conteúdos, “os termos de uso e serviço de provedores de aplicações de Internet devem assegurar amplo acesso à informação e prever medidas de devido processo”, como preconiza a Recomendação 9 do Decálogo da ISOC Brasil. Este é o caminho que deve ser preferido como primeiro recurso para que se encontre o equilíbrio entre a liberdade de expressão e a responsabilização dos intermediários da Internet por suas ações e omissões. Com regras claras de moderação de conteúdos, com expedientes capazes de assegurar a tomada e a prestação de contas pelos provedores, com medidas de recurso extrajudicial para os usuários junto aos próprios provedores, e com a possibilidade de recurso judicial sempre disponível de forma permanente no ordenamento jurídico nacional, estão perfeitamente estabelecidas as condições para que os provedores exerçam a moderação de forma transparente e respondam por eventuais ações abusivas.
Para finalizar, a ISOC Brasil enfatiza que “a importância de mecanismos de análise prévia de impacto deve ser reforçada na adoção de medidas pelo setor público e pelo setor privado”, conforme defendido na Recomendação 10 do seu Decálogo. Tal cautela parece claramente não ter sido adotada pelo Ministério do Turismo ao propor um decreto que tem diversos impactos sociais e econômicos.
A ISOC Brasil defende, assim, pelas impropriedades associadas a tal proposta de decreto, a suspensão imediata de sua tramitação. A ISOC Brasil fica à disposição do Governo Federal para, junto ao CGI.br e outras organizações da sociedade civil, do setor privado e das comunidades acadêmica e técnica, discutir o tema da moderação de conteúdos e demonstrar a plena adequação do atual modelo brasileiro de Responsabilidade de Intermediários para assegurar a liberdade de expressão e, ao mesmo tempo, combater desinformação e ilícitos na rede.
São Paulo, 02 de junho de 2021