21 Dezembro 2022

Carta em Defesa do Modelo Brasileiro de Governança da Internet

O modelo multissetorial de governança da Internet adotado no Brasil, reconhecido e elogiado nacional e internacionalmente por sua relevância e história, nasceu num processo de consenso multissetorial que culminou com a criação do CGI.br – Comitê Gestor da Internet no Brasil em 1995. Pioneiro e globalmente inédito à época, foi implementado com a representação de diferentes setores da sociedade, inclusive do governo, para, sempre em busca permanente do consenso, elaborar e propor diretrizes, princípios e recomendações para o desenvolvimento e o uso da Internet no país. Não deve ser pouco lembrar sua Declaração de Princípios para Uso e Governança da Internet no Brasil, publicada em 2009 depois de extenso debate e acordo entre seus integrantes. O Decálogo do CGI.br é um dos grandes feitos que projetou o Brasil nos fóruns internacionais.

Além das muitas razões filosóficas, técnicas e políticas que podemos elencar e que justificam a necessidade de preservação do modelo do CGI.br, importa salientar que o CGI.br e seu braço operacional, o NIC.br – Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, desenvolvem inúmeros projetos de grande interesse e impacto para o desenvolvimento da Internet no Brasil, dos quais citamos apenas alguns: a mais extensa rede de pontos de troca de tráfego do mundo; as séries anuais de estatísticas de padrão mundial sobre a penetração da Internet em todos as dimensões da sociedade brasileira; programas de capacitação técnica para os provedores de conexão de todo o país; estudos, publicações e eventos os mais variados nas áreas de segurança, de web, de privacidade e de infraestrutura; e um amplo programa de capacitação no modelo de governança multissetorial que tanto o caracteriza. Todos esses resultados são custeados com os recursos do registro de nomes de domínio sob o “ponto BR”, gerenciados pelo NIC.br, uma sociedade civil sem fins de lucro e, portanto, sem onerar quaisquer recursos públicos.

Um dos maiores méritos do modelo do CGI.br é sua natureza não-estatal – de forma similar a muitas entidades técnicas globais, como a ICANN e o IETF, suas recomendações são adotadas de forma voluntária pela sociedade, pelas empresas e pelo governo. O debate multissetorial no seio do CGI.br teve grande relevância para o desenvolvimento de importantes legislações brasileiras para a área da Internet, como o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados.

As excelências técnicas e operacionais e o reconhecimento internacional deste modelo dão ao Brasil importante protagonismo nos debates globais sobre a governança da Internet, tornando o CGI.br uma liderança fundamental em diversas frentes de discussão, tal como exerceu ao co-organizar a NETMundial, evento internacional de forte repercussão e até hoje celebrado pelos resultados obtidos e pelo exemplo de debate multissetorial equânime.

Mesmo com todos os novos desafios que surgem pela crescente digitalização da sociedade e da economia, inclusive com fenômenos perturbadores como a proliferação da desinformação, do discurso de ódio e da cibercriminalidade através da rede, o modelo do CGI.br tem se mostrado à altura, capaz de conduzir com as necessárias moderação e qualidade o diálogo em busca das soluções que a sociedade exige.

Para o sucesso do CGI.br na condução de sua missão, há que se salientar a importância da Norma 4, publicada sequencialmente na mesma data de criação do comitê, prevendo a distinção da Internet como um Serviço de Valor Adicionado às Redes de Telecomunicações, princípio este também contemplado posteriormente quando da criação da Anatel em 1997 como órgão regulador dos serviços de telecomunicações.

No entanto, a conjuntura recente tem trazido preocupações no que se refere à continuidade do exitoso modelo brasileiro de governança da Internet, da bem-sucedida trajetória do CGI.br e de seu importante papel para a sociedade brasileira. Dois exemplos recentes podem ser destacados.

No Legislativo, há Projetos de Lei propondo estender a órgãos de regulação de telecomunicações competência regulatória sobre serviços que são típicos da Internet, ou outros projetos propondo transformar a natureza do CGI.br em um órgão da administração pública de competência regulatória. Propostas como estas trazem equívocos fundamentais. De um lado ferem o princípio adotado no Brasil desde a Norma 4 sobre Serviço de Valor Adicionado; de outro, ao proporem o CGI.br como órgão público com atribuições de agente estatal, desvirtuam sua principal natureza multissetorial e não-estatal. As propostas de regulação da Internet devem levar em conta que cada camada da rede envolve características e incidência legal distintas – é inconcebível que a regulação de conteúdos e ações de preservação de direitos relacionados a esses conteúdos sejam colocadas no mesmo patamar regulatório das camadas de infraestrutura.

No Executivo, proposições de alocar ou centralizar a Internet, sua miríade de áreas e temas numa única pasta ou Ministério, além de enfraquecer o caráter multissetorial do Comitê, equivocadamente juntam em um mesmo pacote distintas funções, atribuições e dimensões. A esse propósito, a proposta recém divulgada de uma secretaria de serviços (e direitos) digitais, a ser acrescida à estrutura do Ministério das Comunicações, tende a esse equívoco. Diferentemente, para aprofundar o nosso exitoso modelo multissetorial de governança da Internet há que expandir seu caráter múltiplo e matricial.

Apelamos, portanto, para que, seja no Legislativo ou no Executivo, a formulação de leis, de políticas públicas e de ordenamento administrativo preservem o bem sucedido modelo brasileiro de governança da Internet, fortemente calcado no modelo multissetorial do CGI.br, no NIC.br, na separação entre a infraestrutura de telecomunicações e a Internet como Serviço de Valor Adicionado, princípio previsto pela Norma 4, e na interação com múltiplas áreas de governo.

21 de dezembro de 2022

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